BR.RJ.COC.OC.COR.PES.4.3
Canal dos Abrolhos, porto de Caravellas, 2 de Outubro de 1905.

Querida Miloca,
Escrevi-te pela a ultima vez antes de chegar a Victoria – Ás 12 h de 30 entrávamos a barra da Victoria passando ao lado do farol de Moreno e junto ao lindo convento da Penha.

Não podes imaginar que belo espetáculo se divisa então: o mar deita um braço de 300 a 400 metros de largura pelo interior da terra Inúmeras ilhas verdejantes com belas edificações são dispostas, formando um belo canal, ao fundo do qual, e a direita de quem entra, está a cidade de Victoria, disposta em anfiteatro, pequena iluminada pelo sol e cuja vista encheu-me da mais justificada alegria, porque, com a terra, vi cessarem-se os sofrimentos de enjôo e, mais que isto, de soluço que perseguia-me noite e dia.

Lançado ferro foi o República cercado de embarcações: escaler de médico de porto Dr Aguirre, escaler da policia do porto, escaler da Alfandega e escaler do Governador do Estado. Recebidos os visitantes fomos cumprimentados pelo Dr Aguirre que feita a visita á bordo permitimos como é de praxe a entrada de todas as pessoas que vieram: fomos cumprimentadas pelo ajudante de ordens do Governador que veio convidarmo-nos para hospedar-nos em Palácio, pelo deputado estadual D. Pinheiro Jd nosso antigo colega de ano e outras pessoas cujo nome não retive Quase afônico e em completo jejum desembarquei tão satisfeito como quem sai dum cárcere. Visitamos em primeiro lugar a Inspetoria do porto, depois fomos ao Palácio cumprimentar o Governador, meu antigo conhecido que me é devedor de alguns favores e que recebeu-me muito delicadamente, insistindo para que fosse morar no Palácio, ao que não acedi; ofereceu-me então Champagne, que não aceitei porque estava em jejum. Visitamos depois a Inspetoria de Higiene Terrestre que está a cargo de um nosso antigo colega de ano um mulato pernóstico que, segundo ele mesmo disse-nos não cuida senão de politica e nunca vai a repartição. Seguimos depois ás 2 horas da tarde para casa do Aguirre que deu-me um abraço. Não imaginas com que sem cerimonia devorei tudo quanto havia e como senti-me reconfortado. O “menu” que nos ofereceu foi o seguinte: canja, galinha assada com farofa, carne de porco com arroz, doce de goiaba e café. A senhora de Aguirre uma roceira muito “sacaria”, tratou nos muito bem apesar de estar tuberculosa e muito abatida. Findo o almoço, ou melhor, o jantar saímos a visitar a cidade. Descemos, (porque a cidade é toda em morro e as ruas são ladeiras), enquanto o Aguirre foi visitar um navio que entrava e o Pedroso foi tratar de comprar as cousas de que carecíamos á bordo: carvão, agua, carne, legumes etc fiquei numa farmácia dum tio de Aguirre a conversar e a indagar de tudo. A cidade quase que em revolução: os espíritos então agitadíssimos o congresso está contra o Governador, manifestações percorrendo as ruas, discursos, manifestos etc. Tudo isso extremamente cômico, porque os mais acerbos adversários encontram-se na rua e conversam como dois bons amigos indo depois para os jornais onde se decompõem como verdadeiros regateiros.

Passei depois a visitar a cidade: um verdadeiro chiqueiro: não ha a mínima higiene, não ha esgotos: os despejos são feitos no mar por meio de barris de modo que ás 10 h da noite ninguém mais pode aproximar-se das praias. Não ha agua a não ser de uns poços imundos: Ha perto da cidade duas fontes de boa agua mais onde para recolher uma lata de Kerosene são necessárias cerca de 5 horas! E ainda assim são precisas 3 pessoas: 1 para apanhar a agua e 2 para proteger este contra o ataque dos outros que estão a espera! – As ruas são vielas imundas que nunca são limpas cheias de lixo, dejecções de animais etc, etc. As casas estão esboroando-se, são de péssima construção salvo um pequeno número de exceções. Ha um teatro: um verdadeiro pardieiro todo de madeira e parme pintado que dá pelo pomposo nome de “Theatro Melpomesse” e que custou para mais de 600 contos de réis!! Atualmente está no teatro uma dançarina “Stella Follet” que faz a dança das serpentinas e que está oferecendo uns benefícios a favor de instituições de caridade da cidade, e que por isso, encontram-se na rua umas fiadas de “sacarias” passando cartões para os tais espetáculos. O Hospital um horror! Fui visitar um colégio de Irmãs de caridade e aí encontrei moribunda, afetada de tuberculose galopante uma irmã de caridade.

que é irmã de Rego de Faria: Contristou-me em extremo o espetáculo, porque poucos dias antes a pobre moça nada apresentava de suspeito e creio, não terá 3 dias de vida! Depois destas visitas voltámos á bordo onde dormimos admiravelmente sem uma única oscilação do navio.
No dia imediato ás 7 h da manhã achávamo-nos de novo em terra donde, de véspera, já te tinha escrito e mandado também uma serie de cartões postais. O Pedroso foi ao Mercado enquanto o Dr Aguirre visitava um navio que chegava e eu passeava pela cidade “tutudando” tudo. Ás 8 h da manhã tomámos uma lanchinha de gasolina que trouxemos conosco e fomos visitar o Hospital de isolamento na Ilha de Príncipe uma verdadeira vergonha! que custou um dinheiro surdo! Fomos depois ao Convento da Penha, construção secular situada no alto duma rocha sobre o mar: uma verdadeira beleza hoje abandonada. Entretanto havia aí uma festa com Te Deum em ação de graças pelo salvamento de passageiros e tripulantes dum vapor que soçobrara havia dias. Foi uma festa interessante muito cheia da côr local, tendo podido estudar nelas os hábitos dos espírito-santenses. Passeámos depois pela cidade do Espirito Santo, antiga Villa Velha, outrora Capital do Estado e em que a família Aguirre tem uma vivenda bastante aprazível, com um belo jardim donde colheram um belo ramalhete que pretendo colocar em nosso camarote. Consegui apanhar alguns mosquitos e larvas. No alto do morro da Penha, no Convento a que acima aludi encontrei um individuo com febre intermitente do qual consegui colher varias laminas de sangue. Voltámos depois para Victoria tendo visto algumas canoas do Clube de Regatas e depois de ter tirado varias fotografias e de ter estudado as condições topográficas das ilhas existentes; afim de ver qual a que melhor se prestará para a instalação dum hospital de isolamento. Chegados á casa de Dr Aguirre aí almoçamos ás 2 horas da tarde, sendo o “menu” o seguinte: vatapá, siri recheado, carne de porco, arroz, bife com ovos, laranjas e café. Com receio de enjôo não comi vatapá. Ás 3 horas da tarde saímos de novo em demanda do porto de Caravelas.
Saída a barra da Victoria comecei de novo a enjôar e … lá se foi o bom almoço de Dr Aguirre. A’ noite, dizem os que não dormirão, o navio jogou extraordinariamente a ponto do carpinteiro de bordo ter caído da cama 3 vezes e o piloto não ter conseguido dormir, assim como o Pedroso. Felizmente de noite, nada sinto durmo admiravelmente, não enjôo e não sei de que se passa á bordo. Caminhámos por perto dos terríveis Abrolhos porém pelo lado de terra e tão perto dela chegamos que encalhámos na lama donde já saímos e estamos parados á espera do prático que levará o navio até Caravellas, onde pretendemos presenciar um dos mais belos espetáculos da região: a pesca de baleias que constitui o principal comercio da zona. Já temos encontrado vários desses cetáceos que passam ao largo, atirando altas colunas d’agua e que fogem espavoridos diante dos espadartes seus mais terríveis inimigos. O Republica está parado na entrado do canal de Caravellas, são 2 horas da tarde, o Pedroso cada vez mais gordo exercita-se na pesca, nada tendo conseguido apanhar até agora, ansiosos esperamos a chegada do pratico que como bom brasileiro que é ainda não dignou-se de aparecer apesar de termos içado o respectivo sinal e termos apitado. Paciência! Pretendemos dormir hoje em Caravellas, partindo amanhã de madrugada, talvez para Porto Seguro, afim de vermos o monte Paschoal e o primeiro porto do Brasil a que chegou Cabral. Adeus minha querida, creio-me já curado do enjôo com o uso de chá preto. Muitos beijos e caricias a todos os nossos filhinhos, muitas e muitas saudades a todos os nossos e muitos beijos saudosos e abraços do teu

Oswaldo

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