BR.RJ.COC.OC.COR.PES.4.13
Saída da Barra de Aracajú 3h de 11 de outubro de 1905.
Querida Miloca
Ha 2 dias que o terrível enjôo não me tem absolutamente permitido de te escrever. Ainda agora estou-o fazendo na iminência de ser por ele assenhorado. Enfim, enquanto não cair de todo vou referir-te o muito que se tem passado após minha ultima carta que, creio, foi escrita entre Corôa Vermelha e Bahia. – Navegámos em mar bastante picado Santa Cruz, perto da Corôa Vermelha até Bahia cuja barra transpusemos, cerca de 4h. 30 da tarde de 6 do corrente. Nosso navio fez uma bonita figura, entrando com boa marcha, muito garbosa, saudada pelo forte da Barra, pelo forte de S. Marcello, pelos 2 navios de guerra atualmente ancorados na Bahia . Lançado o ferro, aproximou-se logo a lancha Nuno de Andrade da saída do Porto trazendo a bordo o Inspetor do Porto Dr Raymundo de Andrade, um grande mulatão velho muito gordo, acompanhado de seu ajudante o Dr Calmon – Feitos os cumprimentos de estilo e após pequena palestra recebemos novos visitantes que vieram numa outra lancha: eram o Gonçalo Moniz, que conheces o Dr Fortunato Silva lente da Faculdade e outras pessoas cujos nomes não me ocorrem.
Eram cerca de 6 horas da tarde. Para termos mais liberdade não quisemos vir a terra com eles. Despediram-se e retiraram-se cerca das 7 horas da noite tendo logo depois o Andrade mandado um cesto com vatapá e outros pratos baianos. Depois de termos descansado um pouco e não tendo comido os acepipes oferecidos descemos á terra á procura de jantar.
Não imaginas que tristeza! Tudo fechado demos umas voltinhas, tomámos um “cicerone” e, subindo para a cidade alta, (a Bahia é dividida em cidade baixa ou comercial e cidade alta ou aristocrática) pelo ascensor denominado o “parafuso” procurámos jantar, o que fizemos no melhor hotel da cidade o “Sul Americano”.
[Vitimado pelo enjôo interrompi esta carta e recomeço a escrevê-la, subindo o rio S. Francisco, em caminho de Penedo e desfrutando um dos mais belos espetáculos que nos tem sido dado contemplar.]
Depois de termos jantado percorremos ainda algumas ruas desertas e voltamos para bordo, onde dormimos calmamente. – No dia imediato estávamos de pé muito cedo e ás 7 h. da manhã já tínhamos tomado um bonde de tração animal (porque os há a tração elétrica na cidade baixa) e percorremos o bairro aristocrático da Bahia: Bairro de Victoria até a Barra. As edificações existentes são bem delineadas cercadas de jardins bastante floridos e até certo ponto obedecendo a linhas arquitetônicas definidas. Ás 9 h. estávamos de volta á procura de almoço no Hotel Paris. Ainda não havia almoço! Ainda grande parte da cidade dormia! O padeiro ainda não tinha vindo (na Bahia faz-se pão uma só vez ao dia); o gelo não tinha também chegado! Conseguimos contudo almoçar um vatapá de véspera e um bife com ovos. Depois de mais algumas voltas pela cidade dirigimo-nos para bordo, onde tinha marcado “rendez-vous” ao Inspector do Porto para 10 horas afim de visitarmos o nosso Hospital, sito á Ilha de Itaparica: o hospital do Bom Despacho. Chovia. A pontualidade baiana só se manifestou ás 11 horas e como recebêramos a visita dos Ds Pacifico Pereira e Menandro Meirelles Filho, Inspetor de Higiene e Diretor do Desinfetório só podemos partir de meio-dia. Atravessámos a Bahia e fomos á Ilha de Itaparica celebre pelas mangas e como estação para cura de beri-beri e aí visitámos o lazareto. O desembarque foi feito numa canoa pouco estável, de modo que muito nos arreceamos dum banho intempestivo. Visitámos o hospital, velho pardieiro mal enjambrado, mas onde o Dr Raymundo de Andrade, para ser-me agradável, tinha mandado por umas telas de arame uns tambores e outros dispositivos referentes á profilaxia da febre amarela. Depois da visita, tomámos um pequeno “lunch”. A comitiva composta dos Ds Raymundo de Andrade, Bulcão, Menandro Fo e Pedroso comeu as iguarias oferecidas pelo 1odestes. Entre os acepipes figuravam umas grandes empadas coradas em amarelo açafreado pelo azeite de dendê ou pelo urucú e que na opinião de Pedroso estavam magnificas; limitei-me a tomar uns copos d’agua Appolinaris e uma xícara de café. – Voltamos: Para melhor segurança a comitiva bifurcou-se, vindo uma primeira cancada para bordo do rebocador Paraguassú, ficando a outra aguardando em terra a volta da canoa – A Ilha Itaparica é muito pictoresca – Frondosas e colossais mangueiras estendem-se pela praia, cajueiros copados prometem uma larga messe de belos cajús. Pelas praias espalham-se lindíssimas conchas, ouriços, caramujos esparsos sobre uma areia alvíssima que vem beijar um mar d’aguas azuladas, completamente transparentes. Junto ao hospital e a ele pertencendo, ergue-se uma pequena capelinha, que visitei; mais além um tosco cemitério, onde repousam os desgraçados vitimados quase todos pela febre amarela. – Estava terminada a visita ao Bom Despacho do qual trago varias fotografias. Volvemos á terra em visita ao edifício da Inspetoria do Porto da Bahia. No cais aguardavam nossa chegada o Gonçalo Moniz e o Dr Fortunato Silva. Após uma ligeira palestra, com muitos segredos “dondogagens” de Raymundo que duma feita fez-me ao ouvido um mexerico e depois, batendo-me no ombro com toda familiaridade perguntou-me “comprendes-vous?”, Voltámos para bordo, onde descansamos das fadigas do dia e das numerosas amabilidades dos baianos, em que honra seja-lhes feita, são inexcedíveis – Cuidamos de tomar as notas diárias, mudar as placas fotográficas e deitámo-nos para prepararmo-nos para o dia seguinte, para uma excursão matinal ao desinfetório de Mont Serrah. Ás 7h da manhã entravamos em terra já em companhia de Gonçalo Moniz e de Raymundo de Andrade á espera do elétrico que nos devia levar a Itapagipe via Boa Viagem ou Avenida Tarquinio até a ponta Mont Serrah onde ergue-se um antigo forte do tempo da invasão holandesa. No ponto assinalado descemos, caminhámos um pouco a pé e chegamos ao desinfetório onde esperava-nos o Dr Menandro Filho. Depois de termos tomado café, biscoitos etc. visitamos as instalações e depois de termos tomado agua de côco com côco verde voltámos de novo a pé e fomos visitar um estabelecimento industrial modelo denominado “Villa Tarquinio”. Trata-se de uma grande fabrica de tecidos de algodão a qual está anexada numa vila operaria muito bem instalada com escola para crianças e adultos, escola de desenho, de arquitetura, Kindergarten, sala de leitura, medico, farmácia – cada casa bastante higiênica tem um belo jardim sempre florido – Ao operário que tiver 5 anos de casa sem uma nota a Cia dá casa de graça e aqueles que tiverem 10 anos de bons serviços e mais de 3 pessoas da família empregadas na Fabrica a Cia oferece uma casa de que se tornam proprietários, casa situada fora da vila operaria, que podem alugar se assim o quiserem mas que não poderão vender. Depois de terminada essa visita que fizémos em Companhia tambem do Dr Gordilho medico da Fabrica voltámos para a cidade afim de irmo-nos preparar a bordo para fazermos varias visitas e virmos jantar em casa de Gonçalo, Na véspera o Seabra telegrafara-me, pedindo-me que procurasse um dos seus amigos íntimos que tem na Bahia, um Dr Joaquim Pires, que enviou-me um cartão e que preparava-se para inaugurar neste dia um jornal politico Seabrista denominado “O Norte”. – Fomos para bordo ás 12h 30 – almoçamos, vestimo-nos; sobrecasaca cartola e voltamos á terra ás 2h 30 pm. Subimos á cidade alta e estávamos na praça do Palácio indagando da casa de residência particular do tal Dr Pires para visita-lo quando fomos por ele procurados e levados para a redação do jornal que inaugurara e que estava em festa. Imagina tu eu visitando uma redação de jornal com champagne e discursos!! – Muito contrariado saímos e fomos visitar o Dr Fortunato á rua S. Pedro 38. Fomos como sempre amavelmente recebidos e apresentados ás filhas, umas baianinhas bem “sacarias” e bem feias, uma das quais é noiva dum rapaz empregado interinamente aí na Saúde Pública (É esta a origem das numerosas atenções e carinhos de que fui alvo por parte do professor Fortunato… sou linguarudo, bem sei…. mas….. a verdade é esta.) – O Dr Fortunato sempre amável e acompanhou-nos na visita que fizemos ao Pacifico Pereira Inspetor de Higiene da Bahia e irmão de Manuel Victorino. Fomos mui bem recebidos com todas as incômodas etiquetas e pragmáticas, sendo-nos oferecidas taças com Champagne. Depois de apresentar-nos as filhas, sobrinhas, etc (saccarias) retiramo-nos sempre acompanhados de Dr Fortunato que desceu em casa, marcando-nos rendez-vous para 5 horas afim de vimos ao jantar que me era oferecido pelo Gonçalo Moniz – Depois de procurarmos, em vão pela cidade café (não ha cafés na Bahia e não ser numas toscas imundas) estávamos a 5 horas no ponto marcado e juntos tomámos o bonde para Nasareth, que deveria levar-nos até o largo do Desterro onde reside Gonçalo Moniz. Este para obsequiar-me deu-me um jantar para o qual convidou as notabilidades medicas da Bahia. No bonde encontrámos de viagem para lá o Dr Araujo, lente de Fisiologia e o atual Diretor da Escola de Medicina. —-[Interrompo aqui esta carta: são 11 horas da noite: o luar lindíssimo reflete se nas aguas serenas do S. Francisco. Estamos acordados defronte de Penedo, ouvindo o descante dum trovador que se acompanha num plangente violão. Vou carregar as maquinas fotográficas e deitar-me porque tenho de fazer madrugada]. Ao jantar compareceram: os Drs Pacifico Pereira, diretor de higiene e professor de histologia, Dr Fortunato Silva, prof. de operações, Dr Carneiro de Campos, prof. de anatomia descritiva, Dr Araujo, prof. de fisiologia e diretor da Escola, Dr Anisio Circundes, professor de clinica medica, Dr Fróes, substituto de propedêutica e sua senhora Dra Fróes, uma senhora de óculos com cara de inglesa; além desses convidados do mundo medico havia outros profes das Escolas politécnica e de direito, advogados, oficial de marinha etc. Havia 2 mesas – As senhoras existentes (enormes e colossais saccarias) eram irmãs de Gonçalo, e senhoras de alguns médicos e uma serie intérmina de “velhacarias” O lugar de honra me foi dado – O jantar correu animadamente no meio de amistosa palestra. Ao champagne o Gonçalo levantou-se e fez-me um longo e elogioso brinde que me fez ficar neurastênico. Terminado o jantar, retiramo-nos para bordo cerca de 10 horas da noite, porque tínhamos que levantar-mos muito cedo, afim de empreendermos uma viagem a uma fazenda fora da cidade pertencente ao Dr Menandro, Secretario da Faculdade e donde deveríamos seguir a cavalo, afim de escolher um lugar para um hospital de isolamento – No dia imediato ás 6 h. da manhã estávamos no cais a espera do bonde elétrico que deveria conduzir-nos á estação da Estrada de Ferro da Bahia a Lagoinhas, estação dos Calçados, onde aguardava-nos o Dr Menandro Filho. Seguimos de trem até a estação da Olaria, onde descemos e dirigimo-nos á fazenda de Dr Menandro. Depois de apresentados à família e depois de tomarmos café, leite, biscoitos etc. seguimos à cavalo para a Ponta de Areia. Forneceram-me umas botas colossais com esporas, deram-me um chapéu de cogumelo à inglesa e um belo cavalo muito esperto. Toda a família estava reunida na porta: era ocasião de montar. Passei a perna e tão desastradamente que meti as espóras no cavalhinho que disparou a pinotear e a saltar. Agarrei-me ao Sto Antônio e depois dum visto atroz seguimos a viagem. Mas não estava terminando meu martírio! Tínhamos de fazer a viagem com toda a pressa afim de não perdermos o trem: os cavalos iam a meio galope. As colossais botas, escorregavam-me pelas pernas e o pé da bota, sem o recheio de meu pé não se sustentava no estribo e lá se ia o meu equilíbrio e assim fomos e voltamos, depois de ter visitado a Ponta da Areia. Tomamos de novo o trem e voltamos para cidade ao meio dia. Visitámos a escola de medicina. Esqueci-me de referi-te que em minha ausência os estudantes de medicina foram a bordo fazer-me uma manifestação, não me tendo porém encontrado. Depois da visita á Escola fomos almoçar com alguns lentes num restaurante perto da Escola denominado “Casa Havaneza”. Sahindo d’aí fui apresentado e palestrei com mais 5 ou 6 lentes que ainda não conhecia e depois das despedidas, tomámos não mais o ascensor mas o plano inclinado (a Bahia tem 2 planos inclinados e 1 ascensor) e descemos á cidade baixa onde depois das despedidas embarcámos o Gonçalo Moniz e eu, tendo ficado o Pedroso, em terra a fazer as ultimas compras. Eram 2 horas da tarde. Ás 3 horas recebemos a visita do Ministro do Interior do Estado e mais médicos e ás 4 horas da tarde zarpávamos do porto baiano, após os cumprimentos de estilo. Transposta a barra comecei no meu martírio: voltou o enjôo e o desespero. – Saímos da Bahia cativos da gentileza dos baianos que intrometeram-se em nossos corações. Além de todos os carinhos e cuidados em terra cumularam-nos de presentes: trouxemos à bordo frutas finas, abacaxis, talhos, moringas, doces, flores, mosquitos, enfim, tudo quanto podia ser-me agradável. Faço ponto aqui.
Adeus minha adorada Miloca morto: de saudade, cansado e triste envio-te o coração para que o repartas com os nossos filhinhos de quem como de ti estou morto de saudades. Muitas saudades a todos os nossos. Lembrança a todos e para ti os melhores e mais puros sentimentos de quem muito te por e saudoso beija-te
Oswaldo
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