BR.RJ.COC.OC.COR.PES.4.15
Recife, 17 de Outubro de 1905 – às 4 horas da tarde.

Minha querida Miloca

Dizia-te que estávamos ancorados na foz do São Francisco, onde devíamos pernoitar, afim de esperarmos que na barra houvesse agua bastante para transpassamo-la.
O deputado nosso companheiro de viagem pôs-se a frescota e começou a papagueiar. Pedi-lhe desculpas, mostrando quer só poderia escrever quando o nosso está parado e recomecei a escrever-te. Às 11 horas deitei-me. No dia imediato às 6 horas da manhã, o Republica recebia o pratico e aproveitando o começo da rasante transpôs a barra. O nosso deputado franzido de medo exclamou constantemente: “não tenho vergonha em declarar que tenho medo”. Passada a barra ele resfolegava sugando um monumental charuto que ele nunca deixa sem substituto. O navio seguiu para alto mar e eu lá fui enjoado para a amurada. Todos aí [almoçaram?] feijoada e não sei mais o que, e eu fiquei encostado à amurada a vomitar bílis e sangue, pedindo a Deus que encurtasse a viagem.
Com efeito por volta das 3 horas da tarde ancorávamos diante de Maceió  num porto aberto, onde o mar é quase tão forte como na alta. Vestimo-nos. Fiz a barba apesar de mais morte que vivo emprestei meu chapéu Panamá a nosso companheiro de viagem que num cochilo deixara o chapéu cair no rio. Recebemos à bordo a visita do Dr. Gouvêa, inspetor de porto, do representante do governador e d’outras pessoas. Desembarcamos e fomos logo visitar a repartição e saúde enquanto esperávamos o bonde, que demorou-se enormemente vir. Seguimos todos para a casa do deputado. [?] que, de Penedo tinha telegrafado á senhora que preparasse para meu almoço os pratos nacionais das Alagoas: a “carapeba” e o “sururu”. O 1º é um peixe e o segundo  é uma espécie de marisco, preparado sob a forma de fritada e que aqui no norte chamam “frigideira”. O “Home” de meu amável companheiro deixa tudo a desejar; tudo sujo e mal tratado; a senhora sem colete e sem dentes, as crianças sórdidas e mal criadas, o marido muito grosseiro, tratando a senhora como uma criada, que na realidade era, pois não sentou-se à mesa, servindo a mesa aos hóspedes. Tudo isto assaltou-me. Apareceu-nos depois um irmão do deputado, médico, com uma voz fina de falsete, de pince-nes azul, muito míope e muito estúpido, muito gordo e muito implicante. Teve o topete de perguntar-me com toda a [?] e estupidez: “aquela historiada de matar os mosquitos no Rio deu algum resultado?”. Calei-me e dei a palavra ao irmão que discursou sobre os brilhantes resultados obtidos etc etc. Terminado este almoço fomos fazer uma visita a diversos pontos da cidade, [?] a visita ao Governador, um caboclo muito simpático, Paulo Malta. Entramos para o salão nobre muito bem decorado com quadros feitos por um patrício nosso mandado pelo estado à Europa. No salão, porém estava uma filha do Governador a batucar um terrível exercício num piano marimba. Ao entrarmos veio com maneiras distintas cumprimentar-nos e discretamente retirou-se. Nas escadarias do palácio, edifício de belo aspecto, encontramos criados molambentos, com crianças seminuas e sujas pertencendo, creio, à família do Governador.
Retiramo-nos do palácio, passeamos de bonde até o bairro denominado “Bebedouro” e voltamos para a casa do Inspetor do Porto Dr. Gouveia que nos tinha convidado a jantar. Em casa de Dr. Gouveia recebi várias visitas: Dr. Euclides Malta, senador federal, futuro Governador e irmão do atual, Dr. Euzébio de Andrade, deputado federal capitão intendente Fredim Costa, capitão de Porto, Diretor da Instrução Pública, Diretor de Higiene, Diretor do Hospício de Alienados e outras pessoas [?], cujos nomes e colocação não pude conservar. Fomos jantar. Mesa bem arranjada, flores. A família de velhos, Mme Gouvêa, bastante simpática e amigável, uma irmã solteira, já tia, e um rapaz farmacêutico. Todos um tanto acanhados, mas bem amáveis. O Dr. Gouveia, avelhantado pela moléstia, alto magro, de óculos azuis é o clínico dos pobres, idolatrado pela população desgraçada que nele encontra um amigo e arrimo. O jantar que, como todo jantar de norte, ficou [?] sobretudo por peixe, camarões, etc. correm bem e depois do jantar fui para o fundo da casa com a velha procurar larvas de mosquitos de que trouce um vidro cheio. Às 8 horas da noite após as despedidas e cumprimentos retiramo-nos para bordo acompanhados até o embarcadouro, no porto de Jaraguá, por todo a comitiva existente. Esqueci-me de referir-te que a tal médico implicante, que já tinha jantado em casa, jantou pela segunda vez comendo como um alarme. Todos já tinham terminado e o Dr. Chico Pontes ainda mastigava!

Quis na mesa a meter-se a discutir medicina comigo. Dei-lhe umas respostas um pouco incisivas e ásperas, que fizeram com que ele mergulhasse o nariz nos pratos e expelisse a língua com a ultima garfada que deu, talvez a milionésima! A bordo do Republica que agitado pelo mar jogava, deitei-me logo e adormeci. À meia noite zarpou nossa “cuia” a vapor (como o batizou o nosso companheiro de viagem que deixamos em Maceió) em direção ao Recife, donde estou te escrevendo esta, aproveitando os últimos momentos disponíveis antes do navio fazer-se ao largo. Temos que jantar em terra num banquete oferecido pela classe médica e devemos partir à meia noite, retrocedendo até o lazaredo de Tamandaré.

A 1 hora 30 pm do dia 15 o República ancorava no [Lamarão?] porto exterior do Recife e fez sinal pedindo um pratico que o trouxesse para a “Poça”. Contornado o farol, este extremo norte dos arrecifes ancoramos entre estes e a terra, deixando entre nós e o mar o molhe construído sobre as pedras por Maurício de Nassau, holandês, nos tempos coloniais. Molhe este que tem resistido até agora e onde vêm-se fixados verticalmente numerosas peças de artilharia, onde os navios amarram as espias, ficando presas aos arrecifes. Fundeados recebemos a visita do escaler da saúde em que vinham: Dr. Fernandes de Barros, diretor do 2º Distrito Sanitário, Dr. Padilha, seu ajudante, rapaz simpático que passou há pouco pela cruel dor de perder a esposa de parto, Dr. Octávio de Freitas, Comissário da Sociedade de Medicina e Cirurgia. O oficial de polícia, irmão da Senhora D. Barreto [?]. Depois de alguma palestra o Octavio de Freitas convidou-me a ir hospedar-me em casa dele a o que não acedi, apesar da insistência aparentemente sincera. Retiraram-se todos. Pouco depois fomos visitados por uma Comissão da Escola de Farmácia que veio trazer-nos as boas vindas. Era um Domingo, a cidade estava morta; Não obstante, depois de jantar fomos até a terra às 5:30 e fomos dar um passeio de bonde até o bairro aristocrático denominado “Magdalena”. Tida “pot-au-feu” todos em suas casas sentados em cadeiras e bancos nos jardins, vestidos brancos de lavar com muita goma, tranças soltas, fitas nos cabelos e tudo mais de acordo; Releva notar um fato extraordinário! Desde que saímos do Rio até hoje ainda não vimos uma única moça bonita!! Voltamos cheios de tédio para bordo onde escrevemos e dormimos. No dia seguinte conforme havíamos previamente combinado descemos à terra às 7:30 da manhã e em companhia de Octavio de Freitas visitamos todos os pontos da cidade que mais nos interessavam. Tomamos um carro e visitamos: mercado, fornos de incineração de lixo, hospital de Misericórdia, Instituto Vacínico, Dispensário da liga contra a tuberculose, Instituto Pasteur, depois destas visitas despedimo-nos de Freitas e marcamos um “rendez-vous” para as 3 horas afim de irmos jantar em casa dele. Saímos à procura de um hotel, depois de muito perguntarmos, soubemos que um dos melhores é denominado “pensão Siqueira”.

Para aí fomos “varados” de fome. Almoçamos bem. A cozinha é perfeitamente a nossa. A sobremesa comemos abacaxi de Pernambuco e a goiabada, afim que o almoço não deixasse de ter uma cor local. Terminado do almoço caminhamos a pé afim de visitarmos a repartição de saúde dos portos. Fomos recebidos pro todo o pessoal. Conversamos e tomamos notas das providencias a tomar e depois de pequena conversa voltamos para bordo afim de descansar um pouco. Às 2 r 30 pm. Tornamos à terra e fomos visitar o Freitas na Inspetoria de Higiene onde chegamos depois de termos passado à porta e após as chamadas dum empregado que disparou atrás do Bonde onde íamos. Visitamos a repartição e depois saímos para apanhar o trem que conduz à casa de Freitas que sendo fora da cidade num lugar denominado “Monteiro”. Como perdêssemos o trem fomos visitar o Desinfetório Estadual, as cocheiras do desinfetório e fomos fazer umas voltas pela rua do Ouvidor daqui a “Rua Nova”. À hora do trem tomamos o comboio às 4 h 40 e depois de termos atravessado zonas muito [?] chegamos ao nosso destino às 4h 45. O Freitas reside com a sogra num verdadeiro palacete sitiado num belo jardim-pomar. Entramos e fomos recebidos pelo cunhado dele, um rapaz de maneiras muito distintas e que já esteve na Inglaterra. Vimos logo também os 2 filhinhos de Freitas, dos quais o mais velho tem cerca de 6 anos. Demos umas voltas pelo pomar e jardim, sendo chamados para jantar. A senhora do Freitas, muito feiazinha, franzina com aspecto de tuberculosa é uma senhora de maneiras distintas, recebendo-nos com certo desembaraço e amabilidade. Trajava uma leiteira de ‘petit pois’ brancos sobre fundo preto e saia preta: está aliviando o luto que a irmã e a mãe ainda trazem bem pesado. A mesa profusamente ornada de flores femininas foi muito alegre. O serviço foi péssimo porque era feito por uma mulatinha, que desconheceu por completo a arte de ser copeira. Disseram-me que a gestão de criados é dificílima aqui. No começo do jantar a criança mais moça fez uma terrível birra que prolongou-se mais ou menos durante toda a refeição. Tive enormes saudades de nossa [“Bilança”?]. Findo o jantar tivemos de retirar-nos rapidamente para apanharmos o trem que nos devia levar a cidade. Ao sairmos a Senhora de Freitas fez um grande bouquet de todas as flores existentes na mesa e deu-mo. Despedimo-nos e tomamos o trem, depois de ter recebido na estação as mais calorosas felicitações dum grande admirador que aqui tenho, o Diretor da Biblioteca Nacional daqui. Fomos em direção à Sociedade de Medicina e Cirurgia que recebeu-nos amavelmente e onde fui muito saudado. Retiramo-nos logo porque tínhamos que escrever, deixando a sessão em meio.

Caminhamos a pé e no trajeto comprei um vaso de folha de Flandres para depositar minhas flores. Voltamos para bordo onde chegamos cerca de 8 horas da noite. Mudei de roupa e comecei a escrever. Às 10 horas o Pedrosa foi deitar-se e fiquei só a pensar e a escrever-te, indo deita-me às 2 horas da madrugada de hoje. Levantei-me hoje às 7 horas e às 8 em companhia de Pedrosa e do Dr. Fernandes de Barros fomos visitar o lazareto da Ilha de Pina, que é bastante distante. Fomos depois almoçar em casa de Fernandes de Barros. Um bom almoço. A senhora é uma “pilosa” dentuça natural de Niterói, já avelhantada tendo, porém, uma filha de 6 meses de idade. Havia algumas visitas convidadas naturalmente para enfeitar a mesa. O Freitas foi também convidado. Terminado o almoço, onde havia muitas flores mas onde não m’as deram, voltamos para bordo, tendo eu contudo arranjado um ramo de rosedá que tirei “em passando” dum vaso que caiu-me ao alcance das mãos. Voltamos para bordo, donde te escrevo esta à espera da hora de maior martírio que aqui me [?]: um banquete oferecido pela classe medica com 3 discursos, e que terá lugar às 6 horas da tarde no Hotel Derby, devendo eu ir até lá com acompanhante de carro!

Imagina o que me espera!! Os jornais todos tem-se ocupado com a nossa passagem. Levo-os todos para que tu os veja.

Adeus minha querida Milocas. Beijos e carícias. [?] a nossos filhinhos, saudades a Mamãe, a tua Mãe e a todos os nossos, e por ti as mais ardentes e pungentes saudades e muitos beijos de teu

Oswaldo

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