BR.RJ. COC.OC.COR.PES.4.18
Villa de Touros, 21 de Outubro de 1905. (Canal de S. Roque – Rio Grande do Norte)

Minha querida Miloca

Depois do almoço tomámos a gasolina e fomos visitar a cidade de Natal. Desembarcámos em uma praça no meio da qual existe uma agulha de mármore com aspecto de mausoléu, mandado construir pelo Adolpho de Barros, sogro de Liberal, grande Presidente da Província. Visitamos depois o correio onde deixei as cartas e cartões que deviam seguir pelo Pernambuco. Fomos depois à Inspetoria de Saúde do Porto, donde saímos em Companhia de Dr Barreto, inspetor do Porto, e fomos visitar o Governador, Dr Lyra, genro de Pedro Velho, irmão de Augusto Severo. Esta família é atualmente dona do Estado. Feitos os cumprimentos habituais, retirámo-nos e demos um passeio pela cidade. O aspecto geral não é desagradável: A cidade é construída numa encosta de morro, e portanto, bastante ladeirenta. Tem bons edifícios de habitação particular. Um teatro novo de bom aspecto: o Carlos Gomes, situado no meio duma grande praça ajardinada e nova: praça Augusto Severo. Não há bondes nem outros meios de condução na cidade. Há agua canalizada, bem regular captada duma fonte colocada no centro da própria cidade, sendo a agua recolhida num reservatório fechado e daí distribuída. Tomámos depois café num hotel, e, aí, fui apresentado a um engenheiro Carneiro da Rocha, parente dessas nossas vizinhas, e agora encarregado da construção da denominada Estrada de Ferro da Penetração, cujo intuito é levar os necessários recursos às populações sertanejas flagelados por uma seca que já dura 5 anos! A cidade é colocada sobre o rio (Potengy), que nesse ponto toma o nome de Rio Grande do Norte. A entrada do porto é bastante perigosa porque, sendo muito estreita, apresenta a forma dum S com as curvas muito apertadas, de modo que a entrada dos navios grandes é muito perigosa. Ainda a pouco tempo o Brazil, do Lloyd bateu de encontro aos arrecifes colocados perto do farol dos 3 Reis Magos e iria à pique se não encalhasse imediatamente na banca d’areia. Voltámos cedo para bordo, cerca de 4 horas da tarde. Às 5 horas, o medico do porto mandou-nos um presente d’uma colossal garoupa e dum dourado, grandes peixes, que serviram-nos de muito, fazendo diminuir nossas despesas de alimentação que, segundo o nosso comissário de bordo, o Pedroso, careciam de ser diminuídas. À tardinha escrevemos; conservei alguns mosquitos colhidos em todos os portos e recebemos a visita do medico do porto, que veio perguntar-nos se carecíamos de alguma coisa. Às 10 horas deitámo-nos e dormimos admiravelmente. – Hoje ás 6 horas da manhã, depois de termos recebido a visita de despedida de Dr Barata, o homem mais cordato que temos encontrado e que mais liberdade nos tem dado, saímos á barra, em demanda do canal de S. Roque, com direção a Macáu. Como nesse canal só se póde navegar durante o dia, porque está cheio de pedras e bancos de areia, dirigimo-nos para a enseada dos Touros onde estamos fundeados e onde chagámos hoje às 11h e 30 da manhã. – Depois do almoço resolvemos ir a terra. Foi um magno problema a resolver: não ha desembarcadouro; é grande risco desembarcar em escaler por causa da forte arrebentação e das numerosas pedras. Resolvemos então irmos de “jangada”. O Pedroso não queria ir por coisa alguma, mas convenci-o e animei-o e lá fomos. Não imaginas que espetáculo cômico e interessante. A jangada, como sabes, é constituída por uns troncos de madeiras unidos, de modo que o mar passa constantemente por cima. Para não nos molhar mandei colocar o que chamam “salgadouro” e é um soalho artificial montada sobre 4 pés e amarrado sobre a jangada, que caminha impelida pelo vento que (ilegível) sobre uma enorme vela. Tomámos nossas capas de borracha e os sapatos impermeáveis – Saltámos para o salgadouro onde sentamo-nos “à turca” e agarrados com todo entusiasmo ao soalho, cobrimo-nos, cabeça inclusive, com uma velha lona e mandámos soltar a vela. Não podes imaginar a velocidade que leva a embarcação: íamos o Pedroso, eu, o comandante e o prático da Costa, que nos acompanha de Pernambuco até o Pará, além da tripulação da jangada que orçava em 5 ou 6 pessoas. Próximos da terra aproaram para a areia, e, nesse, entretanto, os jangadeiros saltam para o mar, num instante e carregam a gente ao colo para terra. Eu não quis estar pelos autos, porque a arrebentação era muito forte, assim que a jangada encalhou corri sobre ela e saltei na areia, antes que chegasse o vagalhão, o que fiz, seguindo o exemplo de pratico. O Pedroso e o comandante quiseram-se fazer carregar. Não imaginas o cômico que presenciei: O Pedroso com seus 82 kos e meio era uma carga mto pesada para o franzino jangadeiro que, não podendo com a carga mergulhou um dos pés do Pedroso dentro d’agua. – O comandante que é um “páo de virar tripas” muito alto e mto magro foi carregado por um homúnculo quase anão, de modo que por mais que levantasse as pernas teve os pés alagados. Descemos à vila que é de um aspecto desolador: uma série de choupanas quase em ruinas habitadas por uma pequena população, mal nutrida com aspecto sofredor constituída em sua maioria por pescadores. As mulheres ocupam-se em fazer rendas de “bilro” e umas rendas que fazem desfiando o pano em teares e que denominam “Labirintos”. Passeámos pela cidade, onde ha muitos cajueiros. Comprámos algumas “varas” de renda para vocês e depois de torrados por um calor abrasador refletido na areia fomos á casa do maior negociante da vila, o Señr Zaccharias, que prestou-me as informações de que carecia e que depois convidou-nos a tomar em uma casa um magnifico café, que em vez de ser moído, é socado em pilão. Andámos percorrendo as casas de família para comprar rendas. Comprei a primeira a uma velhinha que certamente terá mais de 90 anos e que ficou contentíssima com o freguês que comprou 3 “varas”, a 1 pataca a vara. Comprei mais um pouco a umas mocinhas. Não imaginas; num instante, quase toda a cidade queria vender-nos rendas, havendo mesmo um que nos ofereceu arranjar 1:000 de “rendas” e “labirintos”. – Interrompi um pouco esta carta para apreciar o pôr do sol aqui. Que espetáculo maravilhoso! Ao longe, numa praia de areias mui alvas um extenso coqueiral, descrevendo sinuosidades recortadas no horizonte; mais além, nuvens dum vermelho violeta, no meio dos quais o sol, como uma grande esfera em brasa desaparecia lentamente. É o crepúsculo, a agonia do dia, a hora da saudade, em que a mente se povoa das cenas do lar longínquo da efigie dos entes queridos, e em que o coração se constrange e os olhos, cansados de comtemplar a beleza inesgotável de nosso país, umedecem-se ao ver as cenas que se estão passando em nossa imaginação! Enfim é a hora da saudade. – Visto a pequena vila resolvemos descansar á bordo. Fizemos colocar a jangada ao mar, e desta vez, ao colo de um forte caboclo tomei meu lugar sobre o “salgadouro”, cobri-me com a lona e aguardei a chegada dos companheiros de viagem, todos já com a roupa seca pelo vento constante que aqui sopra sem interrupção, e seguimos em direção do Republica que balançava-se, sem a mínima cerimonia. Á bordo descansamos, chupámos um pouco de cana; outros beberam agua de côco, e depois, enquanto o Pedroso cochilava recostado na beliche, resolvi escrever-te, mais estas linhas, que são o meio único de mitigar um pouco esta dolorosa separação, que tanto me tem custado e que ainda tanto me custará! São 6 horas, vamos jantar. Aqui ficaremos até 3 horas da madrugada quando partiremos em direção ao porto de Macáu. [Macáu, 22 de Outubro 1905 – 9 horas da noite. Á hora assinalada partimos de Touros, seguindo o canal de S. Roque que deixamos em sua saída na ponte denominada Caiçara. No canal e mar é um verdadeiro lago, e, em certos pontos passa-se quase encostado á terra. Chegámos á barra do Assú, rio sobre a qual está Macáu, ás 11 h. da manhã. Já aguardava nossa chegada o prático da barra que levou-me 2 telegramas do Leão pelos quais tive o prazer de receber boas noticias de vces. A nosso encontro vieram 3 ou 4 escaleres á vela mandados pela população para receber-nos, caso o navio não pudesse transpor a barra. Não foi necessário, embora arrastando na lama, conseguimos transpor o baixio e subimos o rio, fundeando bem defronte da cidade. – Ancorados recebemos as primeiras visitas: o medico da localidade Dr Pedro Amorim, o Juiz de Direito Dr Câmara, o Promotor Publico, o Presidente da Intendência, o vigário, o encarregado da mesa de rendas federais, deputados estaduais, o mais importante salineiro da terra, etc. e muitos outros, que vieram em outros escaleres e invadiram o “Republica”. Fomos convidados a descer. Como o calor era abrasador e ventava muito desculpámo-nos e prometemos ir á tarde. Convidaram-nos e insistiram para que fossemos jantar com eles. Aceitamos e marcámos 5 horas da tarde para descer.- Passei o dia lendo e escrevendo. Ás 4 horas preparei-me, e ás 5 horas atracava ao Republica um escaler, trazendo o medico, o representante do Congresso Estadual e o Delegado de Policia que vinham buscar-nos. Neste momento recebemos também a visita do (ilegível) do Porto, que doente, mandou-nos uma carta. Tomámos o escaler e fomos para terra. Era domingo, a cidade estava alegre, as casas abertas, a população na janela aguardava nossa passagem.

Fomos até a casa do Juiz de Direito, onde deveria ser-nos oferecido o banquete. Aí achava-se reunida a nata da população. Enquanto aguardamos a hora de jantar fomos visitar uma salina. O preparo de sal é uma operação interessante: Fazem penetrar em grandes tanques mto rasos e mto extensos, denominados “cercados”, a agua de rio, que é salgado numa extensão de 7 Kilometros. A agua salgada açiotada pelos ventos constantes que aqui reinam, e, em virtude da alta temperatura do ambiente, evapora-se e concentra-se. Atingindo um certo grau de concentração é passada para novos tanques mto rasos e mto longos, onde a concentração prossegue-se e o sal cristaliza; d’ahi destes depósitos denominados “baldes”, o sal é retirado por meio de canoas, que circulam por canais denominados “levadas”, existentes entre os baldes, e é acumulado em grandes pilhas, que se vêm durante mtos kilometros ao longo das margens, formando lindas montanhas dum branco de neve. – Voltamos á casa do Juiz de Direito onde jantámos. Á sobremesa fui saudado pelo Dr Amorim que em nome do povo macáuense agradeceu a visita etc. etc. Terminado o jantar sentamo-nos em cadeiras, na calçada e conversámos até 8 horas, quando começou o vento a levantar uma nuvem de pó fino, que penetra por toda a parte, impregna-se pelos cabelos e roupa. Á vista disso, despedimo-nos e retiramo-nos para bordo – Em terra disse-nos um dos magnatas que conheceu-me pelas caricaturas de “Malho” jornal conhecidíssimo em todo norte. Disse-me que a cabeleira estava perfeita, faltando apenas ter presos nela alguns mosquitos! Vê que santa ingenuidade! Á bordo conversei com o Pedroso até cerca de meia-noite quando nos deitámos. – Hoje (23) estamos fazendo horas para que a maré atinja a máxima para sairmos. Já tentámos fazê-lo não o tendo conseguido até agora: o navio está encalhada na lama e não conseguiu safar-se até agora. Neste instante 11h. 30 começamos nova tentativa: a hélice está açoutando as aguas….. lá se vai ele, conseguiu desencalhar, caminhamos em direção de Mossoró. A saída batemos de encontro numa barcaça da qual quebrámos o pau da bujarrona. A barcaça veio fundear no canal, e ou dávamos-lhe uma bicada ou íamos atirados para terra; preferimos o prisioneiro alvitre. – Esqueci-me de referir-te um episódio interessante: na véspera de nossa chegada espalhou-se pela cidade que nós íamos a Macáu recrutar gente para a marinha. Á vista dessa informação os rapazes fugiram todos para a mata onde estiveram todo o tempo de nossa estada na cidade. Alguns atravessaram o rio a nado. – Quando saímos recebemos do Intendente um valioso presente: …….2 sacos de sal.

Adeus minha querida Miloca, não imaginas como estou atormentado por saudades tuas, dos filhos, de todos enfim! Beija e acaricia muitíssimo nossos filhinhos, muitos e muitas lembranças a todos os nossos e com as maiores caricias aceita muitos abraços e beijos saudosos de
Oswaldo

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